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A trilha em direção a gruta de Madalena |
Esta trilha me levará à gruta em que Maria Madalena teria vivido no sul da França após a crucificação de Jesus Cristo. A gruta fica no alto de um paredão rochoso.
— Tive de ligar o GPS aqui porque há muitos caminhos, trilhas e a gente pode se perder, né? — digo, enquanto caminho em direção à gruta.
Não existe quase nada por aqui. Consegui me hospedar em um mosteiro. Há mais de mil anos monges protegem as terras em que Maria Madalena teria pisado.
Antes estive na pequena cidade de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume para ver os supostos restos mortais de Madalena, uma das mais intrigantes e importantes personagens dos evangelhos. Mas quem realmente foi Maria Madalena?
— Maria Madalena é uma peça-chave para toda a história do cristianismo. Não foi por acaso que Jesus apareceu para ela em primeiro lugar e não para os discípulos. Não era a puta, a prostituta que a Idade Média colocou. Os primeiros cristãos não viam Madalena assim — observa o padre Wanderson José Guedes, pároco da Igreja do Sagrado Coração de Jesus.
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No topo do paredão, o mosteiro e a gruta |
Ao conhecer Jesus, Maria Madalena mudou não só a sua vida, como ajudou a alterar os rumos da História do mundo. Ela ganhou destaque nos Evangelhos, mas, alvo de difamação, teve a imagem ofuscada na expansão do Cristianismo. Em um longo processo de revisão histórica, Maria Madalena ressurge empoderada.
O COMEÇO DA JORNADA
Vamos iniciar agora uma longa jornada ao sul da França para conhecer um pouco mais de uma das mais extraordinárias personagens da Bíblia.
— A gente pode situar as primeiras referências a Maria Madalena nas escaladas dos anos 50, 60, do século I. Portanto, se considerar que a vida de Jesus se situou na primeira metade dos anos 30, a morte dele, em média 20, 25 anos depois, já começamos a ter informações sobre Maria Madalena. Aparece no chamado Evangelho dos Sinais, um documento que é um predecessor do chamado Evangelho de João, e vai aparecer também nos quatro evangelhos sinóticos, a começar por Marcos, depois em Mateus, Lucas e por fim, em João — explica o historiador André Chevitarese, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com vários livros publicados sobre a história do Cristianismo.
— Ela era uma mulher primeiro rica. O pai era muito rico. Ela era filha única. Ela herdou tudo. Ela foi casada. Marido a hostilizava muito. Era uma mulher que sabia ler, escrever, fazer conta, porque o pai tinha comércio de pesca forte em Magdala — completa o padre Wanderson José Guedes, que também é artista plástico e autor do tradicional presépio da Glória, na Zona Sul do Rio.
Nesta viagem em busca de informações sobre Madalena, vou atrás do que muitos consideram parte de seus restos mortais, expostos em uma basílica em Saint-Maximin-la-Sainte-Baume.
Para chegar lá, o melhor caminho é desembarcar em Marselha. Mas meu roteiro começa em Lyon, a terceira maior cidade francesa.
Primeiro preciso chegar a Aix-En-Provence. A viagem de ônibus (Lyon-Aix-En-Provence; 29,99 euros) dura quase quatro horas. Olhando pela janela, penso na importância que Madalena representou no início da Era Cristã. Ela se destacava até entre os apóstolos.
— Logo depois da morte de Jesus, por medo, eles ficaram todos reclusos. O papel de Maria Madalena e de Maria, mãe de Jesus, foi fundamental logo depois da morte de Jesus, para que o grupo não se dispersasse. Para as mulheres talvez fosse mais fácil, porque a mulher, naquela época não tinha muito expressão, então elas podiam ir e vir que ninguém se preocupava com elas — diz o padre Wanderson.
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Padre Wanderson: "Maria Madalena era rica." |
Neste trecho da viagem, vamos tentar entender o tamanho de Maria Madalena nos primórdios da Era Cristã. Como será que os outros discípulos a viam?
— Os discípulos não olhavam Maria Madalena como muito bons olhos. Porque Pedro não sabia ler, não sabia escrever. A maioria deles, com exceção de Mateus, que era cobrador de imposto, esses sim, ela não. Ela era uma mulher letrada, estudada, versada no comércio, sabia fazer compras. Essa é a Maria Madalena — acrescenta o padre.
— Maria Madalena ocupa uma certa primazia quando se pensa a participação de mulheres nesse movimento de Jesus com ele vivo e depois desse movimento de Jesus sem Jesus, os múltiplos cristianismos ao longo do século I — completa Chevitarese.
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Chevitarese: o protagonismo de Madalena |
— Pelo protagonismo de Maria Madalena no meio do grupo, eu acho que isso causou não só incomodo aos discípulos, como também a alguns judeus ortodoxos que abraçaram a fé cristã — acredita Wanderson José Guedes.
— Nas quatro narrativas dos evangelhos, Maria Madalena se faz presente naquele momento de visitar o túmulo de Jesus. Ela com outras mulheres ou sozinha tem o papel de informar que Jesus ressuscitou. Mas no caso do quarto evangelho, o Evangelho de João, alguma coisa de extraordinário aconteceu. Ela, Maria Madalena sozinha, toma a decisão de ir no primeiro dia da semana, portanto no domingo, ao sepulcro. E quando ele chega ao sepulcro, ela não encontra ninguém. O sepulcro estava vazio. E ela se desespera e começa a tentar saber onde colocaram o corpo de Jesus. E nisso vai passando um indivíduo. Ela julga ser o jardineiro daquele horto onde tem o sepulcro de Jesus — emenda o historiador André Chevitarese.
— Na ressureição, a primeira pessoa que viu foi Maria Madalena. É ela que vai contar para os discípulos que ela tinha visto ele. Eles não acreditaram — acrescenta o páraco da Igreja do Santuário do Sagrado Coração de Jesus.
— Então Maria Madalena foi preparada para a ressurreição. Por isso que o Papa Francisco, muito propriamente a chama de apóstola da alegria, apóstola da ressurreição. Foi ela que levou a mensagem aos irmãos — destaca o hagiólogo José Luís Lira, pesquisador da vida dos santos católicos.
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Lira: Madalena confundida com duas pecadoras |
— Olha que situação! Uma mulher sozinha é a única testemunha ocular que Jesus ressuscitou. Isso é um problemão, porque num ambiente de século IV, século V, uma igreja onde, do ponto de vista das suas hierarquias eclesiásticas, é uma Igreja marcadamente falocrática, o poder do pênis. Homens é que estão nas lideranças. Mas tem o problema de Maria Madalena. Ela também é uma apóstola. Então é aí que vai entrar o Papa Gregório Magno ou Gregório I — pondera Chevitarese.
No sermão da Páscoa de 591, o Papa Gregório I identificou como Maria Madalena duas mulheres anônimas citadas na Bíblia. O hagiólogo José Luís Lira explica o caso:
— Quando nos primórdios da Igreja unificaram as mulheres bíblicas do Novo Testamento, colocaram a pecadora, aquela que Jesus recebe diante dos fariseus e dos escribas, e outros mais, e dos judeus como um todo. E eles perguntam: “Mestre, o que devemos fazer? A lei de Moisés diz que nós apenas a apedrejemos.” Ele disse: “Aquele que não tiver pecado, atire a primeira pedra.” Essa é uma das mulheres bíblicas. Depois tem a pecadora, que é Lucas que narra, que Jesus estava na casa de um amigo e ela chega, lava os pés de Jesus com lágrimas e os enxuga com o cabelo. Não há nome nessa mulher aí. E tem a Maria Madalena. Lucas diz que de Maria Madalena foram tirados sete pecados, sete demônios. Os sete demônios do judaísmo poderiam ser sete doenças, sete problemas. Não obrigatoriamente era pecado.
APAGANDO MADALENA
O historiador André Chevitarese descreve o processo de esvaziamento de Maria Madalena.
— Então Gregório Magno, propositalmente vincula o nome Maria Madalena à prostituição. Então ela ficou tradicionalmente conhecida como a prostituta arrependida. Mas uma mulher santa percebe? Então tem uma certa ambiguidade nisso aí. Mas isso é contraditório, principalmente nesse ambiente de século, quarto, de século V e século VI, onde a Igreja, nas suas altas hierarquias, vai ganhando uma dimensão de homens estarem à frente dela na Igreja.
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Papa Gregório I: sermão |
Maria Madalena começaria a ter o seu papel diminuído paulatinamente.
— Isso foi uma construção necessária para a Idade Média, por uma questão da Igreja, da questão de poder dos reis, aquela coisa toda. Então era necessário que desmerecesse a figura de Maria Madalena. Mas para os primeiros cristãos, não, eles a tinham, de fato, como a discípula de Jesus Cristo — assinala o padre Wanderson.
A pressão era muito grande.
— Na Idade Média, como havia uma corrente muito forte em defesa de Madalena: “Ora, temos que anular a figura dessa mulher.” O período medieval. É como se ele varresse, apagasse, a figura de Maria Madalena da história do cristianismo — afirma o padre.
— E eles precisam mesmo quebrar esse papel hegemônico, esse papel incômodo que Maria Madalena traz consigo. Entende? — pondera Chevitarese —. Então, acho que é o ponto-chave. Todos os quatro evangelhos falam de Maria Madalena, porém o de João deu a ela um papel muito, muito, muito exclusivo de anunciar que Jesus havia ressuscitado. Então, isso tem implicações e as implicações foram no longo processo dessas histórias ou da história desse movimento, a história do cristianismo, foi lê-lo, rotulá- la, como uma prostituta arrependida.
Agora estou chegando a Saint-Maximin-la-Sainte-Baume. Aqui visitarei a basílica guardiã do suposto crânio de Maria Madalena.
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Centro de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume |
Na foto ao lado, vemos o centro histórico de Saint-Maximin-la Sainte-Baume, pequena cidade de 17 mil habitantes, na Provença-Alpes-Costa Azul.
Enquanto caminho até a basílica penso em como Madalena poderia ter vindo parar nesta região após a morte de Cristo, há mais de 2 mil anos. O hagiólogo José Luís Lira relata a tradição sobre a chegada de Madalena e um grupo de seguidores de Jesus ao sul da França.
— Particularmente, eu acredito e advogo nesse sentido, de que Maria Madalena é a mesma Maria de Betânia, a irmã de Lázaro e Marta. Quando Jesus é morto, Roma queria matar Jesus definitivamente e não queria nenhum vestígio dele. Queriam dar fim a vida de Lázaro e Lázaro para não morrer, foge junto com as suas irmãs Marta e Maria, São Maximino e o outro, que poderia ser morto automaticamente foi o cego de nascença curado por Jesus, que nós não temos um nome bíblico. Nós descobrimos pela tradição francesa: São Sidônio e outros e outros mais que foram no mesmo barco. Foram à deriva e foi parar na Provença.
Os cristãos teriam se estabelecido na Provença e criado fortes raízes.
— E lá na Provença São Lázaro se torna bispo, Lázaro morre, São Maximino se torna bispo e Maria Madalena fica fazendo sacrifícios na gruta. Então, nessa gruta ela se recolhe durante muito tempo e, depois de morta, os restos mortais dela chegaram ao local que hoje é a basílica — acredita Lira.
Na Idade Média, surgiram outras versões sobre a localização dos restos mortais de Maria Madalena na França. Um esqueleto chegou a ser apresentado e cultuado na Abadia de Vézelay, na Borgonha, também na França.
BASÍLICA GÓTICA
Mas, a história que prevaleceu foi justamente a de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume.
— Durante muito tempo, Madalena ficou sepultada num local ermo. Não era dentro da igreja. Então o imperador da época, Carlos Segundo, encontra o túmulo de Maria Madalena e lá tem uma inscrição dentro do túmulo: “Aqui jaz Maria Madalena, aquela que viu Jesus ressuscitado”. Então ele tira o crânio dela, leva a Roma e o Papa Bonifácio diz: “Se for o crânio dela, eu tenho como provar” — conta o hagiólogo.
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Basílica de Santa Maria Madalena |
O papa Bonifácio VIII acreditava ter uma das peças do quebra-cabeça. Estava em Roma o maxilar que seria de Maria Madalena e havia sido retirado do mesmo túmulo antes da invasão sarracena à Europa, em 711.
— Quando se pega a mandíbula e testa, deu perfeito no crânio. Aí então, o Papa Bonifácio decretou que aquele crânio era de Maria Madalena — diz José Luís.
Por ordem do papa, o crânio e o maxilar passaram a ser expostos na cidade de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume em 1295. Também estão expostos uma mecha de cabelo e um pequeno pedaço da pele da santa que teria sido tocado por Jesus.
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Interior da basílica |
Carlos II mandou construir uma basílica gótica no local para abrigar os restos de Madalena. Carlos era Rei de Nápoles, Conde da Provença e sobrinho do rei francês.
É impressionante a Basílica de Santa Maria Madalena, um dos lugares mais antigos de peregrinação católica. É muito interessante porque você vê o crânio que seria de Maria Madalena. Imagina: a pessoa que conviveu com Jesus na Galileia teria vindo para essa região, no sul da França, e vivido 30 anos em uma gruta.
Depois de percorrer brevemente várias áreas da basílica, dirijo-me a cripta onde está o crânio que seria de Maria Madalena. Ao entrar na cripta, podemos ver o crânio. A relíquia está dentro de um relicário de ouro. O movimento de visitantes é intenso no pequeno espaço.
Com base no crânio, podemos pelo menos saber qual era a aparência daquela pessoa. O que se sabe é que o crânio pertencia a uma mulher de aproximadamente 50 anos de origem mediterrânea.
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Descida para a cripta de Madalena |
Um estudo, desenvolvido por profissionais brasileiros, elaborou a face correspondente ao crânio. O programa recobriu, proporcionalmente, o crânio com tecidos e pele. O rosto foi rejuvenescido para 20 anos, a suposta idade que Madalena teria quando conheceu Jesus.
E assim seria Maria Madalena, de acordo com o trabalho do 3D designer Cicero Moraes. Veja ao lado.
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O crânio que seria de Madalena |
— Quando eu vi, rapaz, os aspectos judaicos são muito claros. São muito nítidos. Eu censuro tanto a tonalidade quando ele tem sua tonalidade. Ficou mais claro ainda que era uma judia. Se aparecesse uma mademoiselle francesa, com todo respeito, nós teríamos posto em xeque — avalia o hagiólogo José Luís Lira..
RECONSTITUIÇÃO FACIAL
Posteriormente, uma equipe francesa se baseou em mais de 200 fotografias do crânio para sugerir
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Reconstituição de Madalena (Cicero Moraes) |
outro retrato. Esta seria Madalena (veja ao lado) ou a mulher referente ao crânio, de acordo com o estudo do antropólogo biológico Philippe Charlier, da Universidade de Versalhes, e do artista forense visual Philippe Froesch.
Depois de deixar a basílica, meu próximo destino é a caverna onde teria vivido Maria Madalena.
— Vou pegar um ônibus aqui que leva nas proximidades da gruta onde ela teria vivido por 30 anos. Existe lá uma hospedagem religiosa e vou tentar ficar lá por uma noite — digo, enquanto caminho até a um ponto de ônibus.
Este ônibus faz apenas duas viagens por dia até lá. São 20 quilômetros de distância, mas a viagem demora quase 40 minutos.
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Reconstituição de Madalena (Philippe Froesch) |
O motorista francês, de origem argelina, canta durante o trajeto que corta a bela região. Mas aproveito a viagem para pesquisar sobre a preparação do Novo Testamento, que traz a história de Maria Madalena em 14 citações.
— Quando Constantino declara o cristianismo, a religião oficial do Império Romano, então o cristianismo precisava de quê? Ele precisava ter uma organização — observa o padre Wanderson José Guedes.
Constantino foi o primeiro imperador de Roma convertido ao cristianismo. Ele governou entre 306 e 337.
— Constantino, de fato, pede a Eusébio de Cesaréia, que é um religioso que tem junto de si uma extensa biblioteca, que ele pudesse preparar um corpus documental que viesse a dar base, dar uma unidade, a esse cristianismo — acrescenta o historiador André Chevitarese.
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Reconstituição de Constantino (Crédito: Panaglotis Constantinou) |
Chevitarese explica como se definiram os critérios para começar a formar a Bíblia.
— A mensagem dele, Jesus, quando entra na oralidade e começa a se fixar em termos de escrita, ela foi multifacetada. Então você tem Paulo dizendo que Jesus vai voltar, mas no mesmo tempo sincrônico, na mesma linha temporal, você tem Tomé nas suas camadas mais antigas, dizendo que Jesus nunca morreu, Jesus é aquele que vive. E você tem o Evangelho Q, a base para Lucas e Mateus, onde nem informa como Jesus morreu. Então cada autor dando pesos e dimensões diferentes sobre quem é Jesus. Isso está nos informando a priori, que as leituras sobre Jesus podem ter convergências, mas existem também muitas divergências. O que deu a Liga? O corpus? O que fez ele existir acima de tudo, são alguns pontos centrais. O primeiro desses pontos: Jesus precisa morrer, ser enterrado e, no terceiro dia, ressuscitar. Documentos que não falarem disso ficam do lado de fora. Segundo ponto, o aspecto que vai dar liga e unidade a todos os textos que vão entrar no corpus neotestamentário: Jesus precisa voltar, porque essa é a crença, a segunda vinda. E um terceiro ponto, de preferência é que haja uma ênfase muito positiva com relação ao papel de Maria, a mãe de Jesus. Um papel salvífico. Então, textos que não respeitarem Maria, está de fora. Então tem alguns critérios aí.
— Quando a Igreja começou a sua sistematização, logo depois de ela se tornar a religião oficial do Império Romano, vamos ter o que a gente chama de canonicidade dos Evangelhos — conta Wanderson José Guedes.
Canonicidade é o processo em que a Bíblia ganha legitimidade como resultado de uma inspiração divina.
FORMAÇÃO DA BÍBLIA
— Esses documentos foram reunidos no final do século IV, no chamado Concílio de Cartago, 497 é o ano, pela primeira vez, os 27 livros. Posteriormente, eles vão ganhar uma maior aderência, principalmente das igrejas orientais. Mas, de qualquer forma, foi um processo de construção, de elaboração de um corpus cristão que pudesse dar unidade, ao menos ao campo das igrejas ditas chamadas ou auto denominadas ortodoxas, fossem essas igrejas situadas na parte oriental do Império, nas regiões da Turquia, Síria, Egito, também no ambiente norte africano, Roma e também na Gália — conta Chevitarese..
— E qual foi o critério maior? O Evangelho que era mais usado. Evangelhos que eram mais usados, eram esses quatro — diz Wanderson.
Além dos de autoria de Mateus, Marcos, Lucas e João, outros evangelhos eram utilizados por diversas comunidades cristãs. Os que ficaram de fora da Bíblia passaram a ser chamados de apócrifos, cuja autoria é considerada duvidosa ou não inspirada por Deus.
Mais à frente vamos falar sobre os evangelhos apócrifos e como eles contribuíram para criar mais mistérios em torno de Maria Madalena.
Finalmente, estou chegando a Plan-d'Aups-Sainte-Baume. A estrada é estreita. Veículos em sentido contrário dão preferência ao ônibus e precisam dar ré por longo trecho até encontrar um acostamento. Agora, sim chego à região da gruta. Desembarco em frente à Hostellerie de la Sainte-Baume, mantida por monges dominicanos e que fica um pouco afastada do centro urbano. Está localizada bem no pé do chapadão rochoso onde fica a gruta de Madalena.
— Este aqui é o quarto na hospedaria dos dominicanos (foto ao lado). Custou 49 euros, incluindo o jantar. Esse lugar aqui é muito interessante, muito bacana. Então, vou passar uma noite aqui para ir até a gruta da Maria Madalena. Aqui é a vista para o paredão rochoso — conto, já dentro do cômodo simples, mas funcional.
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Quarto na hospedagem dos dominicanos |
— Aqui iniciando a caminhada para a gruta de Maria Madalena. Uma caminhada de mais ou menos 45 minutos. Já são agora quase 4 horas da tarde. Como o dia está bonito, vou tentar chegar ainda cedo lá — comento.
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A entrada da hospedaria dos dominicanos: 49 euros a diária |
Ao lado da entrada da gruta, há um mosteiro para proteger o santuário, erguido há mais de mil anos. Ele está encravado na rocha a 235 metros de altura.
— Lá em cima a gente pode ver umas construções. Aqui quem toma conta dessa região são os dominicanos.
OS EVANGELHOS APÓCRIFOS
Neste trecho da jornada, precisamos entender os impactos dos evangelhos apócrifos. Padre Wanderson faz algumas observações.
— Eles eram usados nas comunidades cristãs. Nós tínhamos muitos evangelhos apócrifos. Qualquer um que quisesse escrever a vida de Jesus e a experiência que fez dele... porque Jesus não tinha só 12 apóstolos. Os 12 eram os mais próximos.
Na Idade Média, principalmente, circularam muitos romances de ficção envolvendo Maria Madalena. Muitos deles no campo esotérico. Os evangelhos apócrifos também ajudaram a embasar muitas dessas histórias. Os evangelhos que ficaram de fora traziam informações polêmicas.
— Há ainda uma sandice, vou dizer assim, de dizer que Jesus teve alguma coisa fisicamente com Maria Madalena. Jesus era Deus. Ele não precisava passar pelo pecado — pondera o hagiólogo José Luís Lira.
Mas poderia Maria Madalena ter sido esposa de Jesus? Padre Wanderson analisa a questão.
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Reprodução / "Código da Vinci" |
— Não podemos dizer nem que sim, nem que não. Nós não temos uma fonte bíblica e uma fonte científica para provar isso. Não se tem registro nenhum nos quatro evangelhos canonizados que ela era esposa de Jesus. Há quem diga que Maria Madalena também escreveu o seu evangelho, mas nós não sabemos. A verdade é que o primeiro evangelho que foi escrito, que a gente chama de fonte Q, ele se perdeu. Então, nós não temos. Ele seria o parâmetro para a gente analisar os outros evangelhos. E um dos evangelistas vai dizer que quando Jesus aparece para Maria Madalena, ele diz para ela: “Não toque em mim, porque eu ainda não subi para o Pai.” Porque Jesus pede a Maria Madalena para não tocá-lo? Jesus não falaria isso e nem o evangelista colocaria isso lá no Evangelho se não tivesse uma importância. Aí tem uma interrogação enorme. Nós temos elocubrações teológicas, mas nós não temos nada preciso para falar.
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Ficção: romance entre Jesus e Madalena |
— Maria Madalena nunca ganhou esse status de esposa de Jesus. Isso vai aparecer, por exemplo, numa literatura muito contemporânea do Dan Brown, o chamado Código Da Vinci — observa André Chevitarese.
O romance de ficção “O Código da Vinci”, foi lançado em 2003.
— Eu li “O Código da Vinci” quase sem parar, sem nem ir ao banheiro de tanta curiosidade. Mas como romance, não como documento histórico — assinala José Luís Lira.
A trama central se inspira em um trecho de texto de quase dois mil anos. Chevitarese esclarece a razão para a confusão sobre uma suposta relação entre Jesus e Madalena.
— Isso está no Evangelho de Felipe, um evangelho datado do século II e que é dito que Jesus tinha por hábito beijar discípulos e discípulas na boca. E no caso de Maria Madalena, isso também aparece lá. Mas o que é beijar na boca, no tipo de documento, como o Evangelho de Felipe? Aí é que a dimensão teológica varia entre aqueles cristãos contidos no Evangelho de Felipe o beijar-se na boca muito mais do que um ato erótico em si, era uma forma de transmitir uma informação pura de dentro para dentro, sem que passasse pelo mundo. Então, ao se beijar, um conhecimento puro era transmitido de dentro para o outro, que o recebia também pelo beijo. Então não haveria contato na materialidade. Seria muito mais um diálogo no campo da espiritualidade. Acontece que a gente retira isso desse ambiente de século II, três, e traz para o tempo presente, onde o ato de se beijar na boca tem a ver com uma relação erótica, tem a ver com uma relação amorosa. É isso que fez o sucesso do Código Da Vinci, porque você ia lá no documento Evangelho de Felipe e Jesus beijava a Maria Madalena na boca. Isso ele tem razão. Está escrito mais o mesmo Jesus, no mesmo documento, também beijava na boca os discípulos homens e, nem por isso, isso foi lido como um gesto ligado ao campo do homossexual. Não tinha absolutamente nada a ver.
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Evangelho de Felipe |
Na trilha que leva a gruta, começo a pensar sobre como poderia ter sido a vida de Madalena naquela região há cerca de 2 mil anos.
— Imagina, se Maria Madalena realmente viveu aqui, ela caminhou por esse mesmo lugar que estou passando agora. Imagina o que ela comia aqui, o que ela bebia aqui. Provavelmente, água tem nas minas. Imagina o que ela fazia aqui durante o dia. Incrível. Talvez, ocasionalmente, ela seguisse até alguma aldeia para trocar mantimentos.
Na caminhada, sempre se cruza com turistas e peregrinos. Tem até uns banquinhos improvisados com pedras e madeira para o pessoal descansar.
— Aqui começa um caminho com mureta. Então, deve estar perto — concluo, ao me aproximar da parte mais alta.
Para o historiador André Chevitarese, os textos antigos, em suas diversas origens, trazem informações importantes, mesmo no caso dos considerados apócrifos.
— É sempre bom nós olharmos esses documentos como literaturas antigas cristãs. Então evitarmos a ideia de evangelhos canônicos, evangelhos não canônicos, textos inspirados, textos não inspirados, um tipo de documento apócrifo, talvez. O melhor é pensarmos que por trás de cada documento dos vários campos dos cristianismos, nós tenhamos ali um autor, uma barra, uma autora cristã, o cristão produzindo o texto. Pode variar do ponto de vista teológico, a dimensão que cada autor dá para como ele lê a figura de Jesus. Pode variar, mas, indiscutivelmente, nós estamos num ambiente de uma literatura antiga, cristã. Então, essa ideia de um corte canônico, não canônico, inspirado ou não inspirado no documento apócrifo, isso pode sugerir um documento que tenha um peso menor em relação a outros documentos. Então, acho que toda produção literária contém em si mensagens cristãs que podem variar e irão variar de acordo com dimensões teológicas de cada autor ali.
O LOCAL DA GRUTA
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A hospedagem é mantida por dominicanos |
— O problema é que, na longa tradição, inclusive na história fílmica, no cinema, todas as vezes que se representa Maria Madalena, a vida pregressa dela de prostituta, para depois ver, há um processo de conversão, de mudança de vida. Mas isso é coisa do Gregório Magno, é coisa do Papa. No século XIX, a Igreja Católica vai retirar essa pecha de prostituta arrependida. Então Maria Madalena se torna, na sua plenitude, uma santa da Igreja, sem ser necessariamente a prostituta. Mas você não pode esvaziar a decisão de Gregório Magno, porque, aliás, os papas não erram. A partir do século XIX, eles têm a chamada infalibilidade. Então o Papa, quando diz uma coisa é. Então, sem negar o que Gregório Magno falou sobre Maria Madalena numa homilia, se recupera a imagem dela como uma apóstola.
Padre Wanderson faz mais uma observação.
— E a Igreja caminhou até o século XIX / XX com esta mentalidade: de que Maria Madalena era a prostituta, que ela tinha sete demônios, aquela coisa toda. Mas não é isso que é dado à Igreja.
Em 1969, o Papa Paulo VI desfez a associação de Madalena à pecadora e à prostituta.
— São Paulo VI, no Vaticano II, fez a correção. Separou, separou todas. Todas são separadas — assinala o hagiólogo José Luís Lira.
— Vamos ver que o Papa Francisco agora deu o lugar que Maria Madalena sempre teve e mereceu que é discípula dos discípulos — acrescenta Wanderson.
Olhando para os prédios encravados na rocha, fico admirado.
— Os dominicanos estão tomando conta aí desde 1293 a 1793. E depois a partir de 1840. Ali vemos a entrada da gruta (na foto, ao lado), envolvida por um portal. Neste pátio, temos uma escultura clássica de Maria com o corpo de Jesus em seus braços e Maria Madalena um pouco mais abaixo.
Do pátio, temos uma vista vasta de todo o horizonte.
— Foi nesta região que Maria Madalena viveu, segunda a tradição, depois de ter saído da Galileia. Olha a gente está no meio de um penhasco. Olha só. Olha as construções. Estou na entrada do santuário de Maria Madalena, na verdade a gruta onde ela teria vivido por 30 anos, após a crucificação de Cristo.
Vamos entrar agora. Aqui teria vivido Maria Madalena, reclusa, por 30 anos, como você pode ver na foto ao lado. Logo na entrada, vemos o salão principal, onde são celebradas as missas. Neste canto esquerdo, fiéis acendem velas e fazem orações.
— É bem grande. Eu pensei até que era menor. Não sei como era na época. Mas agora, claro, está bem mudada. Tem piso, foram construídos altares,
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O mosteiro dos dominicanos protege a gruta |
mas a caverna é bem vasta. É uma gruta, na verdade — concluo, logo nos primeiros passos.
A diferença entre gruta e caverna é o número de entradas. Caverna tem apenas uma abertura e gruta, ao menos duas.
Seguindo à direita da gruta, mais ao fundo, temos outro ponto para acender velas. O visitante paga pela vela e a acende em prece por algum pedido. Há uma escada que nos leva a um altar, onde ocorre naquele momento uma cerimônia restrita. Desce depois para a parte mais profunda da gruta.
— Cai água aqui. Então, Maria Madalena tinha de onde tirar água potável — observo, em frente a um pequeno reservatório. — E imaginar, pessoal, que Maria Madalena pode ter colocado as mãos nestas partes rochosas.
Os visitantes lançam moedas e objetos na água, após fazerem um pedido. Saio da gruta com uma pergunta óbvia: teria mesmo Maria Madalena vivido aqui?
De acordo com a tradição oriental, que tem o bispo e historiador Gregório de Tours como defensor, no século VI, Maria Madalena teria se mudado para Éfeso, na Ásia Menor, depois da crucificação de Jesus, onde teria vivido em companhia de Maria até a morte. Há ainda outra tradição, um pouco posterior, segundo a qual Madalena teria se mudado para a mesma cidade com João Evangelista, logo após a morte de Maria. Mas a tradição sobre a vida de Maria Madalena no sul da França floresce há séculos com muita força.
Todas essas construções encravadas na rocha, a presença dos monges e o cenário espetacular da floresta tornam Madalena bastante presente neste lugar. Para o padre Wanderson José Guedes, não há como saber a verdade.
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O salão e uma fonte de água na gruta |
Para quem tem fé, a verdade sobreviveu até os nossos dias. É o caso do hagiólogo José Luís Lira. Para ele, a tradição oral trouxe a versão real até a atualidade. Em sua opinião, Maria Madalena viveu na gruta.
O DESTINO DE MARIA MADALENA
Mas será que há algum documento que possa dar mais força a esta tradição de Maria Madalena ter, de fato, vivido no sul da França?
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Reconstituição do Imperador Tito (Crédito: Panaglotis Constantinou) |
muralhas da cidade. Alguns pontos dessa muralha eles vão derrubar e vão entrar em Jerusalém. Isso tem como consequência o templo que vai conhecer um incêndio onde ele vai ser o templo de Jerusalém destruído. É o que hoje se tem para ver quando se vai a Jerusalém. Os muros, uma parte dos muros, e um pouco do que restou do templo em si. E esse grupo mais originário, incluindo os apóstolos, as apóstolas, que foram testemunhas oculares de Jesus.
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Destruição de Jerusalém: paradeiro dos discípulos ignorado |
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Óleo sobre tela: "La Madeleine en méditation" / Autor: Irmãos Le Nain |