sábado, 28 de outubro de 2023

Arquivos inéditos descrevem fenômenos de múmia no Museu Nacional (roteiro)


Rio de Janeiro, anos 1950. Estamos na Sala das Múmias do Museu Nacional. Algo muito estranho está para acontecer. 

Estudantes de egiptologia, durante uma aula, começam a entrar em transe. Descrevem visões do tempo dos faraós e se veem flutuando sobre a sala. 

O arquivo do professor que acompanhava esses fenômenos foi localizado após quase 50 anos guardado em caixas. Entre as anotações está esta foto que mostraria o espírito da múmia. 

O fotógrafo deixou uma declaração de autenticidade da imagem. 

Tudo acontece quando se toca em uma múmia em especial, entre as seis da coleção do museu. Esta múmia é conhecida como Kherima. 


Kherima no Museu Nacional
Múmia Kherima no Museu Nacional (Ju Gouy, 2018, Wikipedia) 

KHERIMA  

Por incrível que possa parecer, aulas sobre o Antigo Egito com sessões espíritas ocorriam, de fato, dentro do Museu Nacional. 

— Estava eu, a cabeça da múmia, o corpo e os pés lá adiante. E quando eu toquei nela assim, eu fiz vupt... 
Ludmila Saharovsky 
escritora 

Relatos impressionantes atraíram a atenção para Kherima. Muitos lhe atribuíam a capacidade de promover curas milagrosas. Neste vídeo vamos explicar esta e outras histórias fantásticas sobre o que acontecia naquelas aulas perturbadoras, realizadas até meados da década de 1970.   

— Sem dúvida, para mim era uma das múmias mais interessantes, mas para todos os visitantes, sem dúvida, era a que mais chamava atenção. Era um dos exemplares mais raros do mundo e também era a única desse tipo em todas as Américas. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

— Eu acho que todo mundo que entrava naquela sala tinha a mesma sensação: a Kherima captava a atenção ali. 
Marianna Procópio 
Jornalista 

— Então, uma estrela pop não é uma múmia qualquer. As outras que estavam no museu eu ficava até com inveja, porque realmente ela tinha uma atenção toda especial. 
João Oliveira 
Psicólogo 
Ludmilla Saharovsky, escritora
Ludmilla: "Eu via a Kherima do alto."

O corpo mumificado de Kherima já não existe mais. O devastador incêndio de 2 de setembro de 2018 destruiu toda a coleção de múmias egípcias do Museu Nacional, a maior até então da América Latina.  
Mas jamais poderemos esquecer as histórias assombrosas sobre esta egípcia. Os eventos misteriosos envolvendo Kherima se tornaram mais conhecidos a partir das aulas de egiptologia do professor Victor Stawiarski, nos anos 1950, na Sala das Múmias. Em 1975, ele fez um relato para a escritora e jornalista Ludmila Saharovsky. 

— E, aí, ele disse que começou a receber mensagens de pessoas que iam ao museu e que aconteciam coisas estranhas. 
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

O professor era bastante respeitado no meio acadêmico. Não só pelo pioneirismo na educação sexual nos anos 1950 como por dirigir a área de egiptologia do Museu Nacional. Ele morreu em 1979. 

Professor Victor Stawiarski com Kherima
Stawiarski coletava depoimentos dos alunos
— Ele tinha uma reputação de cientista para zelar. Ele era o diretor da ala de egiptologia, ele dava aula de egiptologia. Então, assim, não era um qualquer que resolveu inventar uma história e fazer essa história ser fantástica. 
— E aí, nos anos 50, 60, que a gente sabe que tem essa aproximação dele lá com a coleção do Egito, veio a ideia de fazer experimentos com essa múmia do período romano. Esses experimentos, por exemplo, incluíam, por exemplo, a remoção do vidro e ele deixava inclusive os estudantes tocarem na múmia. 
— E também tem histórias que falam a respeito das sensações que a múmia provocava naquelas pessoas que se aproximavam dela. E, aí, são vários relatos das pessoas na época que tocaram na Múmia, entraram em transe ou mesmo tiveram alguma sensação, alguma coisa estranha. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

Uma aluna conta ter desistido do suicídio após uma sessão.  

Carta de Geralda Rosa de Assis sobre Kherima
“Comecei a sentir coisas estranhas nunca antes sentidas. 
(...) O coração disparou e a respiração tornou-se ofegante e difícil. Parecia que o peito ia explodir. 
(...) Num canto da sala escura, um vulto de pessoa deitada, mas não dava para ver o rosto. (...) desse corpo saía um brilho dourado, como se aquele vulto fosse de ouro. 
Senti aquela atração, como se fosse um imã, e minha mão começou a passear pelo rosto da múmia. (...) Comecei a chorar. 
Acordei de um sonho-pesadelo e me senti muito leve, cheia de paz (que não tinha há muitos anos) e uma alegria muito grande. 
(...) A maioria das pessoas que assistiram, disseram depois que foi autossugestão, mas nenhuma delas jamais sentiu uma paz tão grande, uma alegria tão intensa e uma vontade de continuar vivendo tão intensa (para quem já tentou o suicídio uma vez, e pretendia tentar novamente, que sentia repulsa pela vida). Deu vontade de sair abraçando todas as pessoas que se encontravam a minha volta. 
Obrigada múmia de mulher! Pela paz tão grande que você me deu.” 
Geralda Rosa de Assis, estudante 
25 de outubro de 1973   

Foram histórias como essa que levaram Ludmilla a se interessar em participar de uma sessão com Kherima. Como seu sogro era vizinho do professor, na Tijuca, o pedido foi prontamente atendido.  

— Ele falou: “Olha, você quer tocar nela?” Porque geralmente quando as pessoas tocam é que elas sentem alguma reação. Aí, claro, fiquei entusiasmada. Ele pediu para dois funcionários retirarem aquela proteção de vidro. Então, assim, estava eu, a cabeça da múmia, o corpo e os pés lá adiante. E quando eu toquei nela eu fiz assim, vupt... sai de mim. 
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

Mas o que Ludmilla viu? 

— Eu via a Kherima assim deitada. Como se eu estivesse por cima dela. Eu via o Stawiarski. Eu me via. E eu sentia um cheiro de queimado que começou a me incomodar. Eu ouvia que o doutor Victor estava me chamando: “Ludmila, Ludmila”, mas eu não estava vem aí, entende? Eu queria é ficar lá, observando aquela moça linda. Eu a vi sem aquela máscara mortuária, não é? De repente, ele me deu um puxão e eu voltei. Voltei, vamos dizer, para o meu corpo, não é?  Mas eu estava muito emocionada.  
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

Ludmilla não entendeu inicialmente o que havia ocorrido. 

— Para mim, pareceu que foi um minuto, mas ele disse que fiquei bem uns 15 / 20 minutos ali fora do ar sem responder aos chamados dele. 
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

Curiosamente, a escritora conta ter ficado menstruada instantaneamente, mesma situação relatada por outras mulheres que haviam tocado em Kherima durante sessão. 

Mas quem seria Kherima? Nem mesmo sabemos o seu nome verdadeiro. Ludmila conta a versão que ouviu do professor. 

— Se chegou a esse nome porque ele recebeu um dia um pedido de um grupo espírita de Juiz de Fora: se eles poderiam ir ao museu fazer uma reunião ali, ao lado do sarcófago, porque um deles tinha recebido uma comunicação de que o sarcófago onde ela estava não lhe pertencia e que ela não era uma múmia desconhecida. Ela tinha uma procedência, ela tinha um nome. E que o nome dela era Kherima.  
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

Simulação de sessão com múmia Kherima no Museu Nacional
Simulação: espíritas invocam o espírita de kherima
Os espíritas, que segundo outra versão seriam de Copacabana, queriam ficar a sós com a múmia em uma sala. 

— Então, o Stawiarski permitiu que esse grupo fizesse lá uma reunião depois do expediente. E o próprio professor disse que ouviu um instrumento musical tocando que depois ele foi pesquisar, foi conversar com as pessoas, que era uma moça, numa túnica branca, que estava tocando um instrumento como se fosse uma lira, que tinha apenas três cordas. E que essa moça, então, descreveu toda história para esse grupo espírita. 
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

Kherima, segundo o relato dos espíritas, havia sido vítima de uma trama ardilosa.  

— Então, ele disse que a moça contou que ela era uma princesa. A esposa do faraó não tinha filhos. Então, pela hierarquia, ela seria a ocupante do trono. E que a rainha, então, contratou um pessoal para que a matasse. Então, ela foi levada para um determinado local. Mas ela tinha um pretendente que estava prestes a desposá-la. E, quando ele perseguiu esse grupo que se afastou com ela, ele não conseguiu fazer com que ela não fosse assassinada, mas ele conseguiu salvá-la da pira onde o corpo dela havia sido jogado para ser queimado. 
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

O noivo pretendia preservar Kherima para um reencontro no futuro.  

— Ele havia pago por essa mumificação, colocado essa rede de Osíres nos órgãos genitais dela para que ela continuasse virgem para quando eles consumassem o casamento numa outra encarnação, que eles se encontrassem na forma como ela era, uma jovem donzela, vamos dizer assim. 
Ludmilla Saharovsky 
escritora 

Esta história fez sentido para Ludmilla. Seria a explicação para o cheiro de queimado em sua experiência. 

Para a revista O Cruzeiro, em edição de 16 de outubro de 1966, o egiptólogo Victor Stawiarski destaca que muitas pessoas alegavam alucinações ao tocar na múmia. Mas, ele mesmo acreditava que os efeitos seriam mera sugestão. 

"O segredo da Múmia", Everton Ralph
Ralph romanceou a história de Kherima 
A mesma reportagem cita o caso do jornalista Everton Ralph, que havia conseguido bolsa de estudos no Egito para pesquisar a história de Kherima. Ao voltar, após seis meses, escreveu o romance “O segredo da Múmia”, classificado na reportagem como especulativo.   

— Esse livro traz essa história de que essa jovem teria sido então uma ilustre princesa, filha de um faraó e da 21.ª dinastia. Aí já vem o primeiro erro. Então, nós estamos falando de uma múmia que é comprovadamente certo que ela viveu, talvez no segundo século, terceiro século da nossa era. E aí a gente está falando que ele a identifica como uma princesa do terceiro período intermediário. A gente está falando de uma distância temporal de mais de mil anos. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

Kherima aparece em outras obras. O escritor Affonso Romano de Sant'Anna encontrou inspiração em conversa com um grupo de amigos, entre os quais estava Ludmila.  

— Você acredita que o Affonso fez uma crônica com essa minha história e comigo, na coluna dele do Jornal do Brasil?
Ludmilla Saharovsky 
escritora  

Em 1955, um fato inusitado envolveu Kherima e um grande nome da música brasileira. 

“Atenção, Atenção, Beverly Hills, Califórnia! Faleceu Carmem Miranda. Beverly Hills, Califórnia, o falecimento de Carmen Miranda ocorreu ao amanhecer de hoje, em sua residência, momentos depois de se despedir de amigos que a levaram em casa após um último show de que participou na televisão.” 
Heron Domingues, Repórter Esso 
5 de agosto de 1955 

Como o corpo de Carmem Miranda havia sido embalsamado para o enterro no Rio, muita gente, pensando que ela estivesse no Museu Nacional, foi visitar a múmia. 

Jornal Última Hora
Por décadas, Kherima era uma das principais atrações do museu. Nesta reportagem do jornal Última Hora, conta-se que fiéis ofereciam presentes à egípcia. 

— As pessoas começaram levar flores, começaram a levar bilhetes com pedidos para a múmia. Então, estava ocorrendo um fenômeno que a gente vê muito parecido com o que estava ocorrendo com imagens de santos. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

“Assisti ao maior espetáculo da minha vida. 
Quando levantaram o vidro, senti um cheiro de jasmim... Pensei que fosse o senhor que tivesse colocado para tapear o pessoal, mas minhas colegas sentiram cheiro de rosa e uma sentiu cheiro de sândalo. Houve outros que não sentiram cheiro algum. Então, não houve tapeação. Houve sim uma coisa que não consegui explicação. 
(...) Um homem apareceu e disse-me: ‘Não toque nela, seu corruptor. Ela é uma virgem. Se tocar, eu te mato. O homem falou comigo como se eu fosse um homem, e não uma moça. 
Acordei, e ouvi o senhor me perguntar se eu queria colocar a mão na múmia. Tive medo, mas coloquei. 
Acredite se quiser. Levei umas punhaladas nas costas e não vi mais nada. 
Acordei no chão e nos seus braços... 
Senti grande alegria por saber que não estava morta...” 
Sandra Rangel, 19 anos, estudante 
28 de outubro de 1973 

As aulas fantásticas e a romaria, porém, não se estenderam por muito tempo. 

— Aí, começou uma caravana a ir. Começaram a falar que a múmia realizava milagre. A coisa começou a crescer de tal maneira, como é que você vai conter, né, batalhão de pessoas que está querendo ver uma múmia que faz milagres. 
Ludmila Saharovsky
escritora 

— Então, isso começou a trazer uma preocupação pra época, para o museu, e talvez isso tenha sido a razão deles impedirem depois os estudos do professor Victor em relação a essas questões mais místicas, envolvendo a múmia. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

O professor também enfrentou muitas críticas por suas aulas sobre o Egito Antigo. Chegou inclusive a receber uma carta com ameaças. 
Egiptólogo Moacir Elias Santos
Moacir Elias: múmia valiosa
Apesar da curiosidade cada vez maior, as pesquisas sobre Kherima avançaram pouco.    

— Nós sabemos que é uma múmia de uma mulher. Pelos estudos realizados, então ela está entre 15 e 18 anos. 
Moacir Elias Santos 
egiptólogo 

Os registros acerca de Kherima são escassos e nem sempre confiáveis. O cadáver era exibido até o início dos anos 1980 em um caixão. Sobre o rosto, havia uma máscara. 

— Nem o caixão nem a máscara eram da múmia. A máscara data mais ou menos entre um século, talvez, 1 a 3 antes de Cristo. O caixão é do século quinto para o século sexto antes de Cristo. E a múmia, talvez, a gente não tem datação, mas ela talvez fosse do século II ou do século III da nossa era. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

E como o corpo desta egípcia veio parar no Brasil? Sabemos que o negociante italiano Nicolau Fiengo levava peças arqueológicas do Antigo Egito para vendê-las em Buenos Aires.  
Giovanni Belzoni, explorador italiano
Belzoni localizou Kherima no Vale dos Reis


Mas devido a Guerra Cisplatina, Fiengo não conseguiu chegar ao seu destino e se dirigiu para o Rio de Janeiro, onde colocou as relíquias à venda. 

— As antiguidades chegaram na Praça 15 e foram desembarcadas e levadas para onde é hoje a Casa França-Brasil. Ela era, então, a alfândega da época.
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

O Imperador D. Pedro I ficou impressionado. O monarca, em carta à amante, a Marquesa de Santos, revela ter levado a esposa, a Imperatriz Leopoldina, para ver a coleção. Pedro I acabaria arrematando em 1827 o lote, que incluía as múmias, entre as quais Kherima. 

Para sabermos mais sobre Kherima, precisamos descobrir onde o negociante Fiengo a conseguiu, juntamente com as outras peças do Antigo Egito. Não há muitos documentos. Mas um jornal da época, o Astrea, traz a rota. 

—  O Nicolau Fiengo conta para o jornalista que elas vêm das escavações de Giovanni Belzoni, o célebre explorador italiano que acabou indo pro Egito e ele acaba encontrando em Tebas uma série de antiguidades. Essas antiguidades são levadas. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

Nos anos que se seguiram outras sete múmias do mesmo estilo foram encontradas em Tebas. A exemplo de Kherima, possuem um processo de e mumificação em que braços e pernas são enfaixados separadamente do resto do corpo.    
D. Pedro I
D.Pedro I arrematou lote com as múmias


— Todas elas são da atual cidade de Luxor. Não há, não há dúvidas a respeito disso. O Fiengo mencionou no jornal que ela vinha das escavações do senhor Belzoni, e que ele encontrou no Palácio de Karnak, que é o templo de Karnak, nas tumbas do Wādī al Mulūk, o Vale dos Reis. Datam do período de dominação romana no Egito. Eram de pessoas que viveram no Egito, só que sob domínio romano. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

Na mumificação mais comum no Antigo Egito, os membros eram enfaixados separadamente, mas uma bandagem final, também em linho, dava os contornos de um único volume, como vemos aqui nesta múmia supostamente do sacerdote Hori, que fazia parte do mesmo lote vendido por Fiengo. 

Apesar das semelhanças no embalsamamento entre Kherima e outras múmias de Tebas, não se sabe se pertenciam a uma mesma família.  

— Esse tipo de mumificação não era uma novidade no Egito nesse momento. Só se a gente tivesse realmente um teste genético comparando todos esses exemplares para saber se tem alguma ligação consanguínea entre eles. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

A versão de que Kherima seria uma princesa não encontra respaldo. A história surgiu na época em que as relíquias egípcias foram negociadas no Rio. 

— O jornal Astrea, que daí menciona a respeito da múmia, diz assim Item dez: “Uma magnífica arca contendo uma múmia, a qual pelas inscrições que se encontram no seu corpo, que existem dentro da mesma arca e que consiste em folhas de árvores, se infere ser uma princesa das mais distintas famílias daquele antiquíssimo tempo, denominada Princesa do Sol. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

Professor Victor Stawiarski, egiptólogo
Stawiarski: pesquisas sobre Kherima


Tudo poderia ser jogada de vendedor. A colocação do corpo de Kherima em um caixão que havia sido de um sacerdote, morto em torno de 850 anos antes dela, e o uso de uma máscara de 300 anos antes, geraram muita confusão. 

— Então, nós não temos nenhuma evidência que ela seja uma princesa. É claro que essas informações acabam passando no tempo e muitas vezes sendo reproduzidas. E daí vem a ideia de que ela seria de origem real, mas na realidade nada disso pode ser comprovado. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

Podemos. É claro, tirar algumas conclusões. 

— E uma coisa é certa: ela vinha de uma família de elite, na época romana, praticamente quase todo mundo era mumificado, mas a maneira com que foi feita e o detalhe, os cuidados, a gente sabe que era uma mumificação de elite. E as referências falam de ela ser filha de um governador, de um alto funcionário do período de dominação romana no Egito, que é uma coisa completamente diferente do período faraônico. Talvez uma jovem que já podia estar casada nessa época e que talvez não tivesse filhos. E do que ela morreu é outro problema, né? Porque como a gente não tem marcas, vestígios no corpo, não tem como saber. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

Exames de radiografias, em trabalho do médico Roberval Bezerra de Menezes, trouxeram à tona mais revelações sobre esta jovem egípcia. 

— E quando essa múmia foi preparada, então o cérebro foi tirado pelo nariz que deu para perceber lá com os estudos da tomografia e tudo mais. E aí foi colocada uma pequena quantidade de resina dentro do crânio. Aí os órgãos foram removidos do interior do corpo, não foram colocados ali e aí não foi feito quase que enchimento algum dentro do corpo. 
Moacir Elias Santos 
Egiptólogo 

 A jornalista Mariana Procópio esteve bem perto de Kherima. Isto, apenas alguns meses antes do incêndio que destruiu a múmia.   

Kherima na transferência de sala no Museu Nacional
Mariana cobriu a remoção das múmias (imagem: Dill Santos)
—   Eu trabalhava na Band e eu fui fazer a pauta: era a transferência da Kherima e das outras múmias daquela coleção supervaliosa do Museu Nacional para uma outra ala mais moderna.  


A mudança era coordenada pelo egiptólogo Antônio Brancaglion Jr, que faleceu em 2021. 

— Era o maior especialista em múmias que acompanhou essa transferência. Foi cercado de cuidados. Eu perguntei um pouco da história de todas as múmias e aquela... quem era aquela múmia? E ele explicou um pouco de alguma mística que rondava a Kherima. Eu lembro que ele falou que tinha uma história que para quem olhasse a múmia que ela hipnotizava.
Marianna Procópio 
Jornalista  

Kherima impactava os visitantes. 

— Eu lembro, Élcio, que o que mais me impressionou foram os pés da múmia. Você conseguia ver o dedo da múmia. Você conseguia ver. Era uma múmia. E se eu conseguir ver o dedo dela ali?  Foi algo que me fascinou e não só a mim. Eu estava gravando com um repórter cinematográfico que era meu parceiro, Dill Santos, e eu lembro de a gente sair de lá e um olhar para o outro, e falar: ‘Cara, você viu?’, ‘Caramba, que sinistro, que incrível’ e aí os dois ficarem impactados. Não só eu como alguém que também era ainda mais experiente que eu. 
Marianna Procópio 
Jornalista

Mariana Procópio, jornalista
Mariana ficou impressionada com os pés da múmia


— Olha só a gente consegue ver o contorno do pé dela. 
Marianna Procópio 
Jornalista

Os pés que tanto impressionaram Mariana chegaram a ser danificados em um acidente no Museu. Uma janela do Museu Nacional despencou e atingiu a vitrine da múmia. Nestas imagens, vemos os danos causados. Posteriormente, porém, houve uma restauração.   

Mas será que Mariana tocou na múmia e sentiu alguma coisa diferente? 

— Não, não cheguei a tocar. Não senti. Não sei se é porque estava trabalhando. Não dei espaço para isso. Eu lembro, não de ficar hipnotizada, mas eu lembro de ficar fascinada. 
Marianna Procópio 
Jornalista

Mesmo assim, Mariana acha que havia alguma coisa no ar. 

— Eu não acredito que a múmia vai levantar e vai correr atrás de você, como a gente vê nos desenhos. Não. Mas eu acredito que há algo além desse plano. Não só nas múmias, mas em todo o resto. E eu acho que alguém que é cercado ou uma pessoa que foi cercado de tanta, tanta devoção a ponto de ser mumificado, de tanta história, de tanta... eu acho que tem uma carga ali, que tem algo. 
Marianna Procópio 
Jornalista

Alguns meses depois da reportagem, Mariana voltaria ao Museu Nacional para cobrir o devastador incêndio em 2 de setembro de 2018. A maior coleção de múmias egípcias da América Latina havia sido perdida. Ela tentou novamente entrevistar o egiptólogo Antônio Brancaglion Jr. 

— Eu fui tentar fazer uma entrevista com ele e eu não consegui. Então, muito abalado, ele falou comigo sem gravar: ‘Não tem condição. Não dá. Acabou.’ 
Marianna Procópio 
Jornalista

O corpo mumificado de Kherima já não existe mais. No entanto, ainda podemos buscar explicações para o que acontecia nas aulas de egiptologia combinadas com sessões espíritas no Museu Nacional. 
João Oliveira, psicólogo
Para Oliveira, autossugestão explica os fenômenos


O psicólogo João Oliveira analisou os fenômenos misteriosos envolvendo Kherima.  

— Me parece muito um efeito de indução e sugestão. Me parece muito que a pessoa quando ela é levada ao ambiente do museu, ela já entra num clima diferenciado, num ambiente diferenciado, que não é só a múmia em si. A própria construção do museu. Além disso, tem todo uma história preparatória, tem tudo. É muito parecido com aqueles parques da Disney que você fica numa sala de espera. Se cria um clima para você entrar na montanha russa, você não entra direto no brinquedo. Faz uma preparação que te conta uma história. Então, a sugestão é muito forte, muito forte. Então me parece uma indução hipnótica, mesmo sem a intenção disso.
João Oliveira 
Psicólogo  

Para o psicólogo, até mesmo fenômenos coletivos podem ser explicados.  

— Outra coisa é um fenômeno muito bizarro e, embora reconhecido já, que é o “folie à deux”, que é aquela expressão francesa para loucura a dois. E também tem a outra expressão quando passa de dois: “folie à plusieurs.”, loucura com muitas pessoas. O que acontece? Uma pessoa. E apenas uma pessoa é influenciada. E essa pessoa entra na alucinação, entra no efeito provocado pela múmia e ela exala essa condição psíquica para os outros no entorno. Então, poderia ser, inocentemente e sem saber, o próprio professor. 
João Oliveira 
Psicólogo 

— Então, esse efeito de contaminação, esse efeito halo, existe, é fato. Agora, o ‘deux’, ele é mais comum entre pessoas da mesma família e do mesmo grupo social. Por exemplo, uma aluna de uma escola alucina, todas... aconteceu recentemente em Alagoas isso. Uma menina na escola alucinou, as outras da turma também entraram no transe coletivo. 
João Oliveira 
Psicólogo 

Com experiência de quatro décadas em hipnose, o psicólogo não se surpreende com mensagens que teriam sido enviadas pelo espírito de Kherima. 

— Então, isso é um fenômeno da hipnose. A pessoa tem a sensação, a veracidade, o aprofundamento focal em uma situação que muitas vezes é apenas simplesmente conduzida pela fala de outra pessoa. 
João Oliveira 
Psicólogo 
Professor Victor Stawiarski em aula
Professor Victor: aulas fantásticas


João recorda de duas sessões em seu consultório para ilustrar a questão. Vamos ao primeiro caso. 

— Em uma sessão muito especial, há uns 25 anos atrás, eu tinha uma menina... ela sofria uma discriminação muito grande. Nessa sessão, eu provoquei nela alucinação positiva, que é você ver algo que não existe, que não está ali. E, nesse caso, ela tinha uma relação muito afetuosa com a Xuxa. E eu falei com ela: ‘Olha, a Xuxa veio te visitar.’ E ela abriu os olhos e conversou com a Xuxa. Ela alucinou que estava com a Xuxa. A Xuxa está viva. Então, não é o espírito da Xuxa. 
João Oliveira 
Psicólogo 

Agora, vamos ao segundo caso. Um paciente se achava culpado pela morte de um amigo. 

— Teve um caso muito especial de uma pessoa que teve uma morte muito trágica. A outra pessoa ficou muito mal e depressiva. Eu induzi alucinação positiva. Provoquei nele a visão do falecido e ele conversou com o falecido. E o falecido, usando a minha voz, obviamente, falou: ‘Olha, você não é culpado de nada, foi um acidente. Poxa vida, viva sua vida, seja feliz.’ Nossa, se resolveu. A esposa dele entrou em lágrimas, chorou o tempo todo, se abraçaram. Foi maravilhoso aquilo. Resolveu a vida do cara. Resolveu a vida do cara. Ele se virou para mim e falou: ‘Foi a alma dele’ Eu falei: ‘Não. Foi uma indução, foi uma sugestão, uma alucinação positiva.’ Ele: ‘Não, não, o senhor foi usado, mas foi a alma dele.’ Aí, o que eu posso falar para ele? ‘Tá certo. Foi.’ Eu não tenho credencial para falar que não foi. Mas eu posso dizer que isso acontece sem a pessoa estar morta, porque é possível fazer com pessoas vivas. 
João Oliveira 
Psicólogo 
— Junta um monte de pessoas com um propósito: vamos entrar em contato com a alma de Kherima no Antigo Egito. Muito possível de Kherima contar milhões de histórias.
João Oliveira 
Psicólogo  

As histórias sobre Kherima que tanto impressionaram no passado foram todas catalogadas pelo egiptólogo Victor Stawiarski até sua mudança para Brasília, no fim dos anos 1970.  

— Eu acho que ele tinha umas oito pastas, com depoimentos, detalhes de visualização das pessoas, com fotos. Ele tinha realmente muito material.   
Ludmila Saharovsky 
escritora 

Mas onde foi parar todo esse arquivo? 

Após a morte do professor Victor, em 1979, o arquivo, encaixotado, seguiu para a casa do filho Luiz Claudio Stawiarski. Em agosto de 2022, Luiz Claudio morreu após um acidente doméstico.  

Luiza Beatriz Stawiarski, assistente social
Neta de Stawiarski, Luiza achou caixas sobre Kherima


Sua filha, Luiza Beatriz, reencontrou as pesquisas sobre Kherima ao abrir as caixas guardadas por mais de 40 anos. 

— A gente não sabia. Não tinha noção da quantidade de coisas que tinha. Então, a gente foi abrindo as caixas e achando isso. 
Luiza Beatriz Stawiarski 
assistente social 

Luiza já ouvira em casa sobre os estranhos casos envolvendo Kherima. 

— A gente escutava algumas coisas em casa, porque eu não conhecia o meu avô. Então, o meu pai, que falava muito e minha mãe também. Meus pais contavam de como que eram essas aulas e que as pessoas relatavam que entravam em transe, que sentiam cheiros, que escutavam músicas.  
Luiza Beatriz Stawiarski 
assistente social 

— Minha mãe assistiu algumas aulas com meu avô no museu. Inclusive, a minha mãe relatava que em uma das aulas... uma das vezes que ela foi lá ela escutou música também enquanto meu avô dava aula. Então, que ela teve esse momento de transe assim. 
Luiza Beatriz Stawiarski 
assistente social 

— Quando a gente foi arrumar as coisas da casa e tudo depois de falecimento deles, dos meus pais, aí a gente começou a achar cartas de pessoas relatando esses momentos nas aulas e agradecendo pelas aulas.  
Luiza Beatriz Stawiarski 
assistente social 


Kherima no Museu Nacional, última imagem
Possivelmente a última imagem de Kherima (Imagem: João Fraga)

“Chego à sala das múmias. O silêncio e penumbra que há deixa-me um pouco amargurada, mas de repente sinto um perfume agradável. (...) de repente uma força pede para que eu coloque a mão sobre a face da múmia, e eu coloco. Logo após, sinto-me estranha e me desloco para um lugar que nunca tinha visto ou estado. É uma caverna indefinível nas suas formas. Fria demais, apenas iluminada pelas pedras cinzentas da caverna. Eu estou jogada no chão da caverna. (...) 

O silêncio era total, e aquilo estava me desesperando. De repente senti-me de volta ao meu mundo. (...) Coloco a segunda vez a mão na face da múmia e sinto que tudo o que estava se passando comigo estava terminando e senti uma alegria imensa pela nossa vida. 
Tânia Dias 
15 de junho de 1974 

Todo o acervo do professor Victor Stawiarski será tratado e disponibilizado para pesquisa. 

— Essas coisas do meu avô em relação ao Museu Nacional, as aulas que ele deu, tudo foi doado para o museu. 
Luiza Beatriz Stawiarski 
Assistente social 

Um dos itens que mais desperta curiosidade é esta foto tirada por um visitante. A imagem é confusa e absorveu marcas de um texto após anos guardada. 

Ludmilla conta que viu a foto, apresentada por Stawiarski, pouco tempo depois de ter sido feita. 

— A foto de um casal que tem uma moça do lado que não estava lá. O Stawiarski imaginou que fosse a Kherima. 
Ludmila Saharovsky 
escritora 

No verso da foto, o autor, que se identifica como Carmelo Chinnisi, descreve as circunstâncias daquele registro fotográfico. Conta ter feito a foto durante visita ao museu, na tarde de 20 de abril de 1975, um domingo. O autor informa que na imagem aparecem a neta Ana Lucia e, um pouco mais atrás, o seu neto Ricardo. Este rosto ao lado, para Carmelo, seria o da suposta princesa egípcia. 

Ele garante a autenticidade por escrito. 

“Professor Victor, esta ampliação é de um slide em cores tirado com uma máquina Ricoh 126 C – EES (Instamatic) com trava no disparador. Não houve sobreposição de fotos porque possuo todos os 20 slides usados.” 
Carmelo Chinnisi 

Foto com suposta aparição de múmia Kherima
A imagem misteriosa à esquerda (foto Carmelo Chinisi)
O fotógrafo profissional Fernando Lemos, especialista em câmeras analógicas, analisou a foto. 

— A primeira impressão que eu tive olhando a imagem é que era uma dupla exposição que a gente chama, ou seja, no mesmo fotograma, o fotógrafo imprime duas imagens diferentes, duas imagens tomadas em situações e tempos diferentes. O fotógrafo afirma que a imagem foi feita com uma câmera Ricoh 126 e essa câmera 126 é um formato de filme que é um cartucho. 
Fernando Lemos
Fotógrafo

— E esse cartucho depois se carrega na câmera, e à medida que se vai avançando os fotogramas, não têm a possibilidade de recuar. É muito difícil, ou seja, praticamente impossível, fazer uma dupla exposição neste tipo de filme. Ou seja, você não consegue fazer uma outra exposição em cima do que você já fotografou. E olhando o manual dessa câmera é que não tem, assim, a possibilidade de você armar o obturador sem avançar o filme. 
Fernando Lemos
Fotógrafo

Fernando Lemos, fotógrafo
Para o fotógrafo, câmera não faria dupla exposição 
— Parece que são duas situações mesmo. Uma pessoa um pouco mais velha, com umas crianças menores em torno do sarcófago, com a imagem ligeiramente mais esmaecida, e uma imagem um pouco mais nítida aqui no centro, que é o centro da questão aí, né? 
Fernando Lemos
Fotógrafo

— Eu não vejo assim a possibilidade de ser um reflexo, não. Acho bem difícil, a não ser que o vidro seja muito grande e a câmera esteja encostada lá dentro, pelo menos assim, né? Mas eu acho... não sei. Acho difícil. É uma possibilidade, claro, mas aí por que que o reflexo, vamos dizer, que é uma aparição, vamos dizer, seria mais nítido que as outras? É muito difícil o reflexo, em se tratando de um vidro, ser mais nítido do que o objeto fotografado. Ou seja, os parentes, as pessoas que estavam visitando ali. Então, se esse depoimento é verdadeiro, aí não sei. É um mistério.  
Fernando Lemos 
Fotógrafo 
Reconstituição de Kherima em argila sintética
Kherima, em trabalho deRonaldo Rocha

Os estudos do professor Victor Stawiarski recém-localizados poderão trazer à tona mais mistérios sobre Kherima e manter ainda o interesse por sua história. 

Estas imagens que você está vendo agora são provavelmente as últimas de Kherima. O cinegrafista João Fraga fez este registro na sexta-feira, 31 de agosto de 2018, durante uma reportagem sobre o museu. Dois dias depois, o incêndio transformou tudo em cinzas.   


Mas, com a ajuda da tecnologia, o novo Museu Nacional poderá exibir uma réplica do corpo desta múmia em seu acervo. Esta imagem, por exemplo, baseada em tomografias feitas no corpo mumificado, é uma reconstrução digital, resultado da parceria entre o Museu Nacional, a PUC-Rio e o Instituto de Matemática Pura e Aplicada. 

Em 2006, em um trabalho do paleoartista Ronaldo Rocha a face desta egípcia foi revelada. Camadas de argila sintética, acrescentadas sobre uma impressão 3D do crânio, mostraram um rosto oculto há quase 2 mil anos. 

Acrescentando detalhes digitalmente, Kherima poderia ter esta aparência. Quando jovem, percorrendo as ruas e os templos de Tebas, não imaginaria que sua vida, dois mil anos depois, despertaria tantas curiosidades. 

 
Kherima em Tebas
Com ajuda da Inteligência Artificial, podemos imaginar Kherima em Tebas





quinta-feira, 16 de março de 2023

O americano do Velho Oeste que se declarou príncipe de uma ilha brasileira


ÉLCIO BRAGA

Um americano do Velho Oeste avista uma ilha brasileira desabitada, a 1.140 quilômetros da costa. Em 1895, ele se autoproclama príncipe e anuncia sua mulher, uma milionária de Nova York, como princesa. Ele cria o Principado de Trindade, manchete em vários jornais. Lança selos, brasão e até uma bandeira. O novo reino é reconhecido por várias nações, mas essa história marcada por romances, escândalos e reviravoltas, terá um final desconcertante: a Inglaterra tomará a ilha e o Brasil vai entrar nesta disputa com a faca nos dentes. 

"O difícil não é perder o que se tem, mas perder o que na verdade nunca se teve." 

James Harden-Hickey: Príncipe no Brasil

O PRÍNCIPE DE TRINDADE 

— É um americano. O nome dele, um nome pomposo: James Aloysius Harden-Hickey. Era filho de um americano de origem irlandesa e a mãe dele era francesa — diz o professor e pesquisador de História Militar Marco de Cardoso, do Centro de Estudos e Pesquisas de História Militar do Exército (CEPHiMEx).

Quando James nasce, em 8 de dezembro de 1854, São Francisco ainda vive a Corrida do Ouro, no Velho Oeste americano.   

— O pai dele criou um patrimônio considerável. Explorava minas de ouro no Velho Oeste — conta o pesquisador João Carlos Moreira.

Entre 1848 e 1855 o sonho dourado atrai 300 mil pessoas à Califórnia. São Francisco, antes uma vila de 15 mil habitantes, passa a registrar altos índices de criminalidade.  

A mãe europeia percebe os riscos de criar o menino em lugar tão inóspito. 

— E a família, ainda no século XIX, logo depois do nascimento dele, emigra para a França — observa Cardoso. 

Riscos no Velho Oeste: James vai para Paris 

A França é um império sob o domínio de Napoleão III, sobrinho de Napoleão Bonaparte.  

— E o James, naquela época, ainda jovem, já ficou fascinado com a corte francesa. Imagina o que não passou na cabeça do adolescente vendo aquela pompa, aquelas honrarias todas, aquele luxo, aquela criadagem enorme, toda vida de uma corte — acrescenta Moreira.  

Os pais matriculam o menino em colégio jesuíta, em Namur, na Bélgica. Mais tarde, o jovem faz Direito, na Universidade de Leipzig, na Alemanha. 

Ao retornar à França, James decide ingressar no exército francês. Aos 19 anos, entra na Escola Militar Especial de Saint-Cyr. Em 1875, conclui o curso com méritos.  

— E era bom aluno, se formou com notas altas, mas um acidente... levou uma patada de um cavalo que o deixou fisicamente debilitado, e ele encerrou a carreira militar — diz Moreira.  

Fora do Exército, James vai lutar por suas ideias por outros caminhos. 

— Ele se casa com uma condessa francesa, dentro desta busca ávida para se tornar um nobre — conta Cardoso. 

Napoleão III: James admira a monarquia

O casamento é com a Condessa de Saint-Pery, com quem terá um casal de filhos. No campo profissional, suas atenções se voltam para a política. 

— E esse sujeito, James, ele se torna um ferrenho defensor da monarquia, apesar de ter nascido na pátria do liberalismo republicano que são os Estados Unidos — acentua Cardoso.  

Em 1883, James perde o pai e herda um pequeno patrimônio. Com isso, ganha tranquilidade para se dedicar a traduções anglo-francesas e a escrever romances monarquistas. Napoleão III havia sido deposto em 1870 e a Terceira República estava a pleno vigor. 

Entre 1876 e 1880, com o pseudônimo de Saint-Patrice, James publica onze romances, todos monarquistas e antidemocráticos, como "Cartas de um ianque", "Um amor do mundo" e "Maravilhosas aventuras de Nabucodonosor”. 

O escritor Irving Wallace avaliou a obra deixada por James Harden-Hickey. Em “The Square Pegs: alguns americanos que ousaram ser diferentes”, de 1958, o escritor classifica os enredos de James como ingênuos, marcados por personagens estereotipados e linguagem plana. 

— E ele começa a se envolver em propagação do regime monárquico, atacar a República. Cria um jornal defendendo a monarquia — diz Cardoso. 

Le Triboulet: editado por James

Em 10 de novembro de 1878, James funda e edita o satírico Le Triboulet. O nome é uma referência a um famoso bobo da corte de Luís XII. A ilustração de capa mostra o bobo batendo em Marianne, o símbolo da República. Em dois anos, o jornal se torna diário. A tiragem alcança 25 mil exemplares. 

Neste período, os jornais seguiam o espírito de Villemessant, que havia comprado o ‘Le Figaro’ em 1854: "Se uma história não causa um duelo ou um processo, não é boa". 

A premissa traz fama a James. Ele é processado 42 vezes por difamação e participa de ao menos 12 duelos. 

— Ele era um exímio espadachim. Então, ele se metia em duelos para defender as ideias, a ideologia dele — relata Cardoso. 

James é capaz de arrancar, com o florete, os botões de um colete. 

É uma fase de festas. James oferece grandes recepções e gasta boa parte de sua herança. Mas ele também obtém uma conquista.   

— Ele apoiava a Igreja também. Ele ganhou o título de barão do Sacro Império Romano-Germânico — conta Moreira. 

A Ilha da Trindade e não "de Trindade": grafia oficial

As coisas começam a desandar em 1887. Com o fim do dinheiro dos monarquistas, o Le Triboulet, sem mais verba, fecha as portas. Outra notícia ruim: seu irmão mais velho, que voltara para a América, morre na ruína. O casamento com a condessa também chega ao fim. 

No meio deste inferno astral, James reflete sobre a essência da vida. A busca o leva a uma viagem de dois anos pelo mundo que começa em Londres.   

— Era um aventureiro. Ele não parava quieto num determinado lugar. Embarcou num navio, o Astoria, um navio inglês — diz Moreira.  

— A vida dele é meio rocambolesca. Isso, a viagem à Índia foi em 1887. Conhece lá as religiões indianas. Começa a pesquisar sobre isso — avalia Cardoso. 

— Passou um ano na Índia. Aprendeu filosofia sânscrita e budismo — completa Moreira.

Para Cardoso, a vida de James "era meio rocambolesca"

No Atlântico, antes de cruzar o Cabo de Hornos rumo ao Pacífico, o Astoria se depara com um cenário que vai mudar completamente a vida de James. A Ilha da Trindade surge longe no horizonte. 

— Aí, ele vislumbra lá no meio do oceano uma ilha desabitada naquela época, terra de ninguém. Aí, os sonhos fervilharam na cabeça dele — conta Moreira. 

Não se sabe o motivo que leva o capitão Jackson, do Astoria, a se aproximar daquele ponto perdido no Atlântico Sul, a 1140 quilômetros da costa do Brasil. Especula-se que o mau tempo o levou até ali. Talvez, tenha sido a necessidade de reabastecer os barris de água ou, quem sabe, queria melhorar as refeições com carne de tartaruga, animal abundante na ilha.  

Na primeira visão da ilha, três picos se destacam, o mais alto deles se ergue a 620 metros. Daí a justificativa para o nome do território descoberto em 1501 pelo navegador João da Nova. 

— Ela foi descoberta pelos portugueses tanto que o nome é Trindade, mesmo em inglês é Trinidad. Mas ela ficou desocupada porque realmente não tem porto natural, não tem condições de plantio, não tem nada ali — conta o historiador Adler Homero, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

De acordo com o jornalista e escritor americano Richard Harding Davis, expoente do jornalismo no início do século 20, James desembarca em um bote e caminha pela ilha. Os únicos animais são pássaros, tartarugas e caranguejos terrestres, além de cabras deixadas pelo astrônomo inglês Edmond Halley, em 1700.   

Harding Davis escreveu sobre James

Célebre por ser o primeiro correspondente de guerra dos Estados Unidos, Richard escreveu “Real Soldiers of Fortune”, na tradução livre “Verdadeiros soldados da fortuna”, lançado em 1906, que traz a biografia de James e de alguns outros americanos polêmicos. 

A porta de entrada na ilha é a Praia dos Portugueses, onde ocorreram as primeiras tentativas de colonização. O local abriga hoje o Posto Oceanográfico da Marinha Brasileira.  

O barão se encanta com o que vê. Chama especial atenção este paredão. Na base, escavada pela violência das ondas, uma caverna faz a ligação entre os dois lados da ilha. Neste local, diz a lenda, piratas no início do Século 19 teriam enterrado um valioso tesouro inca. 

Este mesmo paredão, sabemos hoje, é o que restou do último cone vulcânico existente em todo o território brasileiro. A última erupção ocorreu há cerca de 250 mil anos. 

Trindade emergiu no Atlântico após uma série de erupções vulcânicas que começou há mais de 3 milhões de anos. O território inclui ainda a pequena ilha de Martim Vaz e alguns rochedos, a 48 quilômetros de distância a leste. A área total abrange 10,4 quilômetros quadrados. Trindade tem cerca de oito quilômetros de comprimento e quase 5 quilômetros na parte mais larga. 

O barão decide reivindicar a posse da ilha, que por ser terra nullius, terra de ninguém, está disponível a seu ver, com base em leis internacionais. 

— Ele se apaixona pela Ilha de Trindade. E resolve que a Ilha de Trindade vai ser dele. Ele tinha essa aspiração de ser um monarca — diz Cardoso. 

O retorno a Paris ocorre em 1890. James Harden-Hickey está revigorado, cheio de sonhos. 

Neste momento, James vai conhecer um novo amor. Ele tinha fama de atrair mulheres bonitas. E dessa vez tirou a sorte grande. 

O sogro magnata: John Flagler 

— Em 1891, ele se casa com a filha de um magnata americano. E, aí, ele começa a ter mais dinheiro para os devaneios dele. O sogro dando uma certa ajuda — conta Cardoso. 

Anna Harper Flagler é filha de John Haldane Flagler, ex-sócio de Andrew Carnegie no ramo siderúrgico e um bem-sucedido empresário na produção de tubos de aço. Não temos nenhuma imagem real de Anna. O casamento acontece em 17 de março de 1891, na Igreja Presbiteriana da Quinta Avenida, em Nova York, sob as bênçãos do renomado reverendo John Hall. Nos Estados Unidos, James colocará os seus planos em ação. 

— E começa um processo de tentar registrar essa Ilha de Trindade como uma possessão dele — afirma Cardoso. — Aí, ele chega nos Estados Unidos e começa um movimento em prol disso. 

O barão vai morar com a mulher na casa do sogro em Nova York. A criação de um novo reino absorverá grande parte do seu tempo. 

Um dos primeiros passos é nomear o Conde de La Boissière, seu amigo dos tempos de Paris, como Secretário de Estado. A chancelaria fica na 217 West 36th Street em Nova York.  

Esta era a chancelaria de Trindade em Nova York

— Em 1894, ele se declara James I, o príncipe da Ilha de Trindade. E é uma coisa muito louca, só falando assim, porque ele cria uma bandeira — diz Cardoso.

O pavilhão traz um triângulo amarelo, alusivo à Santíssima Trindade, envolvido em uma área vermelha. 

— Ele cria brasão. Ele cria títulos de nobreza, ordenamento de como seria o governo da ilha — acrescenta Cardoso. 

Em setembro de 1893, o barão notifica oficialmente a vários países sobre a posse da Ilha da Trindade.  

Em 5 de novembro de 1893, James consegue plantar uma notícia no New York Tribune sobre seus planos para tornar Trindade um país independente. A filha de Flagler aparece como uma princesa americana nas reportagens. 

— Um principado... um americano dono de um principado. Isso dava ibope — avalia Moreira. 

Em janeiro de 1894, o barão reitera a possessão e informa que, a partir de então, a terra passa a ser conhecida como 'Principado de Trindade'. Segundo James, muitas representações diplomáticas reconhecem o novo reino. A monarquia será uma ditadura militar. 

— Ele mandou confeccionar uma coroa pra si. Na cabeça dele, o quadro já estava formado, mas a ilha ainda não era dele — pondera Moreira. 

A bandeira do Principado de Trindade

O monarca define que os oficiais de sua corte devem usar bigode “à la Louis Napoleon”. O uniforme da guarda palaciana se inspira no do regimento francês Zouave, usado no século 19, no Norte da África, e adotado também pela 5ª Infantaria Voluntária de Nova York. O idioma oficial do reino será o francês. 

Na chancelaria, James elabora protocolo sobre a colonização. A ideia é empregar trabalhadores chineses na construção da cidade. As lendas de tesouros escondidos na ilha se tornam atrativos para os colonos. Acena-se com o compromisso de dividir parte da riqueza que vier a ser descoberta.

O brasão do novo reino

 

James emite títulos de 200 dólares e oferece, a quem comprar dez unidades, o direito a uma passagem de ida e, de volta, caso se arrependa um ano depois. Os primeiros voluntários farão parte da aristocracia. O monarca prevê também a distribuição de títulos de nobreza.  

Estes são os selos postais emitidos pelo imaginário Principado, e que se tornarão valiosos mais tarde. 

O monarca cria um sistema de ordens e condecorações. Quer incentivar e premiar os que colaborarem com o novo principado. 

— Ele sai nessa toada, tentando o apoio do governo americano para que esse sonho dele se concretizasse, inclusive ele manda uma carta para o secretário de Estado dos Estados Unidos, falando desse desejo dele, pedindo um apoio estratégico do governo americano para tomar posse da ilha. Pelo que se sabe o governo não deu muita trela para ele — explica Cardoso. 

O sogro John Flagler mostrou simpatia com as aspirações do genro. Em entrevista, o magnata comenta sobre o novo reino. 

Selos do principado: hoje raros e caros

“Meu genro é um homem muito determinado”, disse Flagler; “ele executará qualquer esquema em que esteja interessado. Se ele tivesse me consultado sobre isso, eu ficaria feliz em ajudá-lo com dinheiro ou conselhos. Meu genro é um homem extremamente culto, refinado e bem-educado.” 

Flagler comenta até os dois anos em que James esteve em sua residência: “Enquanto ele estava hospedado em minha casa, ele passava quase todo o tempo na biblioteca traduzindo um livro indiano sobre o budismo. Minha filha não tem ambição de ser uma

Réplica da Ordem de Trindade

rainha ou qualquer outra coisa além do que ela é — uma garota americana. Mas meu genro pretende levar adiante esse projeto de Trindade e... ele o fará.” 

— Mas ele continuou com essa ideia de ser o príncipe da Ilha de Trindade. Chegou até a ter algum apoio de certos setores da opinião pública. Setores de formadores de opinião nos Estados Unidos. O The New York Times, por exemplo, publicou matérias sobre ele. Matérias meio que amistosas a essa ideia do James, mas o fato é que a coisa não foi pra frente — relata Cardoso.    

Mas James I recebe um duro golpe. 

— Em 1895, a Grã-Bretanha, o maior império da época, ocupa a Ilha de Trindade, querendo fazer uma estação telegráfica lá — conta Cardoso.

— Não foi uma invasão. Porque, do ponto de vista dos ingleses, aquilo não era de ninguém. Não tinha ninguém lá. Se não é de ninguém, pode ser meu. O objetivo dele era dar apoio ao funcionamento de cabos submarinos. Já havia um cabo submarino ligando o Brasil a Europa. Eles tinham de sofrer manutenção constante e ali seria um local adequado para dar esse apoio — explica Adler Homero. 

A notícia é um baque para o barão. Suas reivindicações sobre as terras abandonadas haviam sido completamente ignoradas. Em outras épocas, a Inglaterra já havia ocupado o arquipélago.  

Ruínas de construção do século XIX em Trindade

— Em 1783, os ingleses ocuparam aquilo. Fez até um forte, Forte da Rainha. Portugal começou gestões diplomáticas para que os ingleses se retirassem. Os ingleses saíram dali. Até porque ali não servia para nada — observa Homero. 

— Aí, Portugal ocupou. Manteve o forte guarnecido até 1796. Aí, o governador do Rio de Janeiro pediu a Portugal para tirar a tropa de lá porque é um lugar infernal. Ia um navio de suprimento de seis em seis meses. Imagine você ficar seis meses sem nenhuma comunicação qualquer — completa o historiador do Iphan. 

— Depois que a Inglaterra pela segunda vez tomou posse da ilha, com o objetivo de criar uma estação telegráfica, esse fato foi noticiado — assinala o capitão de fragata Luís Felipe Silva Santos, coordenador do Programa  de Pesquisas Científicas na Ilha da Trindade

A ocupação explode como uma bomba no Rio de Janeiro, então capital da jovem República do Brasil.  

— Os moradores do Rio de Janeiro, revoltados com a invasão da ilha pela Inglaterra, Café Londres foi depredado, atacado pela população carioca no caso — diz Moreira.

O violento protesto popular pressiona a administração do presidente brasileiro Prudente de Moraes. 

— O governo brasileiro reage, dizendo que Trindade é território brasileiro. Isso vai parar numa corte internacional — afirma Cardoso. 

Arrasado, James prepara a contraofensiva. Não desiste da ilha. 

Marco de posse da ilha colocado pelo governo brasileiro

Durante a disputa entre Inglaterra e Brasil, James trabalha por fora. Busca apoio na diplomacia americana para reivindicar os seus direitos sobre o principado. Ele instrui seu chanceler a enviar uma carta ao secretário de Estado dos EUA, Richard Olney, pedindo a mediação na disputa com a Inglaterra e o Brasil. O problema é que o secretário torna a carta pública como algo bizarro. Como nada de importante acontece naquele agosto, a notícia ganha espaço nos jornais. O príncipe vira motivo de chacota. 

— Colocou a carroça na frente dos bois.  A imprensa viu que não ia sair principado naquela ilha. Duas nações reivindicando a posse do objeto do sonho dele... começaram a não dar mais crédito a ele. As notícias foram reduzindo e ele foi perdendo, vamos dizer assim, a popularidade dele — diz Moreira. 

O jornalista Richard Harding Davis relata o clima na chancelaria do Principado de Trindade, localizada em bairro modesto de Nova York, após a publicação das notícias desfavoráveis. Na soleira da porta, crianças de um cortiço brincam enquanto na rua um vendedor ambulante oferece couves murchas a um grupo de moradoras. 

Vista da vila do Posto Oceanográfico (Foto: Luciano Cajaíba)

O conde De la Boissière recebe o jornalista com desconfiança, mas o trata gentilmente. Richard se surpreende como o conde se refere a James: “Ele me falou com franqueza e carinho sobre o príncipe James”, observa. “Na verdade, nunca conheci nenhum homem que conhecesse bem Harden-Hickey que não falasse dele com lealdade agressiva.” 

Um único jornal demonstra certa empatia com James Harden-Hickey e o conde de La Boissière: o The New York Times. 

O repórter Henri Pene du Bois vê a história por outro ângulo. Ele diz ao editor-chefe Henry N. Cary: “Não há nada de engraçado nessa história. É patético. Ambos os homens são sérios. Eles estão convencidos de que estão sendo roubados de seus direitos. A única falha deles é que eles têm imaginação e que o resto de nós não tem. Foi assim que me impressionou, e é assim que a história deveria ser escrita.” O editor responde: “Escreva assim.” 

Praia dos Portugueses (foto: Luciano Cajaíba)

Em retribuição, o barão concede aos dois jornalistas a Ordem de Trindade, no grau Chevalier. 

— James condecorou jornalistas para tentar virar o quadro um pouquinho, o jogo, para que ele tentasse voltar a ter mais credibilidade, mas as coisas não andaram muito bem para o lado dele, não — assinala Moreira. 

Apesar das zombarias, James I tenta de todas as formas restabelecer a reivindicação de posse, mas recebe apenas o apoio da família e de alguns amigos. 

Uma ideia ousada, porém, lhe vem à cabeça. Ele vai fazer tudo para colocá-la em prática. 

— Só que o nosso James ficou fulo da vida com essa história da Grã-Bretanha e aí ele resolve... qual foi a decisão dele? Invadir a Grã-Bretanha. E aí precisa montar um exército — comenta Cardoso. 

— James tenta lá (com o sogro dele, John Flagler) conseguir recursos para um aparato militar bélico para invadir a Inglaterra a partir da costa da Irlanda. Vê que ideia — espanta-se Moreira. 

— E aí ele vai fazer o que? Pá, pá, pá, vai bater na porta do sogro. Vai pedir ajuda ao sogro. Pedir ao sogro que vendesse alguma fazenda dele, alguma empresa, para poder invadir a Inglaterra. O sogro que não era bobo nem nada não entrou nessa — acrescenta Cardoso.    

Belos cenário no Morro da Cratera (Foto Élcio Braga)

A frustração toma conta de James quando os ingleses deixam a ilha em 1896 e os brasileiros assumem o controle. O Brasil havia alegado ser herdeiro de Portugal, o descobridor daquele território. 

— O Brasil por meios diplomáticos, solicitou a posse da ilha, e com o apoio de Portugal conseguiu, diplomaticamente, que a Inglaterra reconhecesse a soberania brasileira sobre a ilha — relata Santos. 

— A Grã-Bretanha tira o time de campo, digamos assim — diz Cardoso.

Havia muitos interesses em jogo. A Inglaterra queria manter boas relações com o Brasil para obter

Ilhotas próximo à Praia do Príncipe (Foto Élcio Braga)

tarifas alfandegarias semelhantes às obtidas pelos Estados Unidos, que aumentavam sua área de influência na região. Estas questões facilitaram um acordo favorável ao Brasil. 

— Os ingleses ocuparam pouco tempo. Houve gestões diplomáticas brasileiras para que eles saíssem e eles saíram. A Marinha foi lá, fez um monumento, com uma bandeira, dizendo ‘isso aqui é brasileiro’ e foi embora — esclarece Homero. 

O território retomado pelo Brasil teria pouco uso até a montagem de uma base permanente. 

— Trindade foi um presídio para presos políticos. Era o lugar ideal. Não tinha como escapar. E era castigo mesmo. Os presos inclusive, neste caso, alguns ficavam em tendas, outros ficavam em barracões. Só muito mais tarde é que a Marinha veio a ter uma presença constante, uma base naval e uma estação científica no local — relata Homero. 

— Em 1957, efetivamente, foi criado o Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade e, desde então, a ilha vem sendo guarnecida por cerca de 30 militares da Marinha do Brasil que se revezam a cada quatro meses. Então, já temos mais de 60 anos de ocupação da ilha, ininterruptamente — complementa Santos.


Apesar de vista com ironia por grande parte da opinião pública, o estabelecimento de um país independente na costa brasileira poderia ter gerado perda relevante para o Brasil. Hoje o país pode explorar economicamente uma área de 200 milhas ao redor do arquipélago de Trindade e Martim Vaz. 

Lugar marcante: o túnel que liga os dois lados da ilha

— A gente pode ver isso como uma coisa extremamente séria. Extremamente pensada. Não só o devaneio de uma pessoa que quer ser rei, quer ser príncipe. Mas a gente pode ver isso pelo viés da geopolítica também. Será que um americano, dono de uma ilha, aqui perto do Brasil, uma ilha estratégica, no Atlântico Sul, não seria interessante para o governo americano? Tanto que ele teve apoio de certos setores da opinião pública. Formadores de opinião nos Estados Unidos apoiaram a ideia dele. O governo americano nunca se manifestou oficialmente, mas a gente não sabe — avalia Cardoso.   

No meio do imbróglio, James Harden Hickey recebe oferta inusitada: liderar uma revolta para restabelecer a monarquia no trono do Havaí. A rainha Liliuokalani havia sido destituída e presa, em 1893, e uma república instalada, com apoio de tropas americanas e militantes europeus. É também uma empreitada arriscada. Mas não sabemos qual foi a resposta de James.  

Além da perda de seu reino, James enfrenta outro problema: a falta de dinheiro. E ele nem pode recorrer ao sogro milionário. 

O Principado de Trindade: o reino dos sonhos de James

O jornalista Richard Harding Davis acredita que James tenha rompido com Flagler por não ter acesso a herança de sua mulher. A primeira mulher de Flagler, Annie, a mãe de Anna, havia morrido e deixado uma fortuna, mas Flagler era o responsável pelos bens. Para ele, James se mostra despreparado para tocar os negócios.  

O sogro já havia sido contra o casamento da filha. Desconfiava à época que o barão estivesse interessado mais no dinheiro da família. Por isso, inicialmente, James manteve a mulher com seus próprios recursos.   

Uma das mais belas vistas no Morro da Cratera (Élcio Braga)

O curioso é que Flagler parecia ter apreço pelo barão, conforme escreveu Richard Harding Davis: “Ele sempre parece ter falado de seu genro com tolerância, e muitas vezes com admiração, como alguém falaria de uma criança inteligente e rebelde. Mas Harden-Hickey optou por considerar Flagler seu inimigo, um homem de negócios sórdido que não conseguia entender os sentimentos e aspirações de um gênio e de um cavalheiro.” 

Mesmo assim, o barão chega a comprar uma fazenda no México e a investir em minas na Califórnia com dinheiro cedido pelo sogro. Os recursos, porém, vieram indiretamente, por intermédio de sua mulher ou mesmo do Conde de La Boissière, também amigo de Flagler. 

Aos 43 anos, James se sente no fundo do poço. A opinião pública o vê como uma piada, um tolo. Está desmoralizado, brigado com o sogro, afastado da mulher e suas finanças estão combalidas. 

O jornalista Richard Harding Davis, que conhece James, observa: “Você não pode julgar Harden-Hickey como julgaria um contemporâneo. Ele deveria ter vivido nos dias de ‘Os Três Mosqueteiros”. Ele era absolutamente honesto e absolutamente sem senso de humor. Para ele, pagar impostos, pagar as contas da mercearia, depender da proteção de um policial, era intolerável. Ele vivia em um mundo de sua própria imaginação.” 

— Esse tipo de personagem, este tipo de aventureiro da linhagem do James, era comum. Então, no século 19, essa categoria de aventureiro se cunhou esse termo ‘Flibusteiro do século 19”. Um outro grande exemplo: William Walker também era um americano que se declarou dono da Nicarágua. Invadiu a Nicarágua com exército de mercenários e tomou posse da Nicarágua. Claro, foi combatido. Houve uma rebelião contra ele e ele acabou sendo morto em Honduras — relata Cardoso.  

Trindade fica a 1140 km da costa (Google Earth)

Desiludido com a perda de Trindade, James precisa vender parte dos bens para manter a família. Vê pouco a mulher. Anna vai para a Califórnia preparar a nova casa da família. Ela é acompanhada pelos dois filhos do primeiro casamento de James.  

James está no México, mas o último interessado em comprar sua fazenda desiste. O barão se vê em um beco sem saída, mas se recusa a procurar a ajuda do sogro. 

— Acabou que esse sonho dele ser o príncipe da Ilha de Trindade não evoluiu. Aí, ele entrou em uma depressão por não ter conseguido o que ele queria de ser esse, esse príncipe de uma ilha do Atlântico Sul — frisa Cardoso. 

O barão segue para El Paso, no Texas. Lá se hospeda no Pierson Hotel, em 2 de fevereiro de 1898. Na noite do dia 9, por volta das 7 e meia, James se recolhe aos seus aposentos. 

— Ele se isolou num quarto de hotel. Veio aquela depressão. E, aí, ele tomou uma overdose de morfina— diz João Carlos Moreira. 

O navio-patrulha Amazonas na Praia dos Portugueses (LC)

No dia seguinte, por volta de meio-dia, funcionários do hotel arrombam a porta. James está morto sobre a cama. Ele havia deixado para a mulher uma carta presa a uma cadeira. Em um trecho, diz: “Terei provado o cálice da amargura até a última gota, mas não reclamo. Adeus. Prefiro ser um cavalheiro morto a um canalha vivo como seu pai.” 

— O interessante é que encontraram... ao lado do corpo dele estava a coroa que ele mandou fazer do Principado da Ilha de Trindade. E assim terminou o devaneio desse americano em ser o príncipe de uma ilha brasileira — conclui Marco de Cardoso. 

Lettering: 

A pedido da mãe, James I, Príncipe de Trindade e Barão do Sacro Império Romano-Germânico, aos 43 anos, foi enterrado no Mausoléu da Família Hickey, em São Francisco. 

Sua mulher, Anna Flagler Harden-Hickey, morreu aos 82 anos, em 4 de fevereiro de 1950, em um sanatório, em Connecticut, nos Estados Unidos. 

James deixou um decreto real assinado e selado, mas em branco, com o seu chanceler De la Boissière, nomeado regente perpétuo.

O ato permitiria a proclamação de um sucessor para o trono, como o próprio filho de James, do primeiro casamento, e a abertura de uma nova disputa pela posse de Trindade. Mas nada disso aconteceu.